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25 de Abril de 2024
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    Contra o"garantismo penal máximo" e a favor de uma sociedade de vítimas

    Fernando da Silva Mattos*

    “Mas, se for preciso, para fazerem triunfar suas ideias, eles passam sobre cadáveres, atravessam mares de sangue”. A frase transcrita, extraída da obra “Crime e Castigo” escrita em 1866 por FiódorDostoiévskinão se encontra de todo afastada de parte do atual cenário doutrinário e jurisprudencial que se vê em terra brasilisno que se refere ao estudo, desenvolvimento e aplicação do Direito Penal.

    Com efeito, não só quem milita na área processual penal, mas todas as pessoas que de alguma forma se interessam pelo assunto ou que acompanham o desenvolvimento da doutrina e da jurisprudência, conseguem perceber um movimento claro de proteção potencializada à figura do réu e do condenado no processo penal. Diuturnamente entendimentos são criados com o objetivo de possibilitar ao violador da norma penal que cada vez mais consiga se desvencilhar das consequências penais da conduta praticada, em total dissonância com o momento que se enfrenta de crescimento vertiginoso da criminalidade e de alta consciência individual e social das condutas consideradas como criminosas. Para tanto, valem-se os juristas imbuídos de tais propósitos de uma teoria que sofreu, especialmente no Brasil, uma severa distorção dos seus pilares fundamentais, qual seja, a “teoria do garantismo penal” de Ferrajoli. Da mesma forma que a norma jurídica se separa das intenções do seu autor, adquirindo uma força própria que será regulada pelo intérprete, a teoria do garantismo penal vem se distanciando dos seus preceitos originários para servir de escudo para a defesa de todo o tipo de interesse, por vezes ideológicos, corporativos, pessoais, profissionais, acadêmicos e até subversivos.

    Sob o manto de um argumento falacioso de mera “observância da constituição”1 ou de “proteção aos direitos fundamentais”, os adeptos do que se pode denominar de “garantismo penal máximo”, vêm impregnando o meio jurídico de conceitos, teorias e entendimentos que, em verdade, fomentam a desordem e a insegurança jurídica. Busca-se por vezes, no discurso, dar-se um enfoque acentuado ao fato de que a Constituição Federal que é garantista (e ela é mesmo, pois contempla quase todosos axiomas de Ferrajoli), sem qualquer exagero por parte do intérprete ou do aplicador, para que o discurso se apresente de forma mais sedutora ao meio social e à comunidade jurídica, como se a Carta Magna fosse aplicada de forma meramente subsuntiva, positivista, sem a necessidade de realização deinterpretação e opções pelo agente aplicador. Interpreta-se a Constituição sob a influência de ideologias e interesses prévios e transmite-se a ideia de que a única ideologia e os únicos interessesexistentessão de proteção aos direitos humanos e aos preceitos constitucionais. Ignora-se a vontade popular, as opções claramente realizadas pelo destinatário da norma (que também é intérprete legítimo da Constituição, segundo PeterHäberle, constitucionalista alemão, idealizador do amicuscuriae), a fim de fazer prevalecer entendimentos que irão beneficiar somente os violadores da lei penal.

    A fim de deslegitimar a vontade popular, apontam os adeptos do “garantismo penal máximo” que a mídia transmite uma ideia falsa de aumento da criminalidade; que no Brasil não há impunidade (afinal as penitenciárias estão cheias2), que faltam políticas públicas adequadas (por isso que os crimes ocorrem), que o meio social que torna o homem delinquente e por ai vai (não faltam escolas criminológicas para dar explicações outras para o cometimento de um crime que não a vontade do delinquente). Ocorre que, na mesma intensidade com que aumenta o discurso “supergarantista”, aumentam as medidas de redução da miséria e da pobreza sem redução, na mesma proporção,da criminalidade.

    Alguma coisa não está fechando nessa história.

    Com efeito, em razão da estabilidade econômica e da implementação de programas sociais, estima-se que na última década 48 milhões de brasileiros deixaram a pobreza3 e mais de 22 milhões a pobreza extrema 4. Ocorre que no mesmo período a taxa de homicídios permaneceu quase que inalterada.Em relação ao crime de latrocínio (roubo seguido de morte), por exemplo, no primeiro bimestre de 2013, na grande ABC, conhecido polo industrial, o número aumentou cerca de 500% 5, enquanto em São Paulo dobrou. No mês de fevereiro de 2013 houve aumento também da prática do crime de estupro, quando comparado com o mesmo período do ano anterior segundo levantamento divulgado pela SSP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) 6. Furtos de caixa eletrônico com explosivos se tornaram frequentes7 ; homicídios banais são cometidos diuturnamente8; as pessoas andam nas ruas sempre atentas a tudo e a todos; a polícia passa a recomendar que se leve dinheiro no bolso para não desagradar os bandidos9; ônibus são queimados10, delegacias e prédios públicos são alvejados11, autoridades públicas são assassinadas12 em verdadeirasdemonstrações de desafio às autoridades;homens matam as suas esposas, namoradas, companheiras13 ; bandidos debocham de suas vítimas14; as pessoas cada vez mais adquirem equipamentos de segurança e se fecham em suas casas e nada disso evidencia que é preciso simplesmentefazer com que as autoridades busquem que as pessoas respondam pelos seus crimes (sem prejuízo de se garantir de forma adequada o direito ao contraditório e à ampla defesa, nos termos constitucionais e legais). Não se quer nada além do cumprimento da lei, visando à proteção mais acentuada àqueles que são a mola propulsora do país, quais sejam os cidadãos que vivem honestamente.

    Afirma-se, ainda, que atualmente só a “patuleia” é alcançada pelo Direito Penal, fomentando-se uma verdadeira luta de classes. Olvida-se que a partir do momentoem que é criado todo um sistema protetivo à figura do delinquente em geral, a partir do momento em que teorias são construídas e busca-se influenciar o ânimo dos operadores do direito ainda em formação para uma tendência pró-réu, inevitavelmente, quando da aplicação da norma penal, todas as classes sociais serão favorecidas por essa grande benevolência garantista incutida na mente dos juristas, o que, em parte, explica a grande impunidade envolvendo também os crimes de colarinho branco e a criminalidade organizada.

    Ademais, com a disseminação de uma cultura garantista máxima, não é de se estranhar que surjam medidas tendentes a dificultar que as autoridades incumbidas da persecução penal atuem de forma plena, como tal ocorre com a malsinada PEC 37, a denominada PEC da impunidade. Aí está um dos efeitos. Se ao delinquente tudo se deve dar ao máximo, às autoridades repressoras de suas condutas deve se dar o mínimo. Essa é a lógica que se quer ver instalar com a propositura de tal proposta de emenda constitucional, para o deleite dos criminosos e dos seus defensores mais entusiasmados.

    A PEC 37 é um exemplo claro de interpretação constitucional influenciada pela lógica dos interesses mencionada antes, sob a roupagem de proteção aos direitos fundamentais. Vejamos se o voto do relator da proposta junto a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados15 não bem evidencia o quanto afirmado:

    “A relevância da tratativa dessa questão sedestacana necessidade de repudiarmos qualquerprocedimentoinformal de investigaçãocriminal, conduzidos por meio de instrumentos, na maioria das vezes,sem forma, sem controle e sem prazo, condições absolutamente contrárias ao estado de direito vigente, e que ferem, inclusive, as garantias do cidadão, em especial o direito constitucional à defesa”

    Pronto. Deu-se uma roupagem garantista para a proteção de interesses corporativos (o autor da PEC é Delegado de Polícia), utilizando-se, como escudo, de uma suposta homenagem ao direito constitucional à defesa. Não importa que em uma investigação, mesmo que pela polícia, não se fale em direito à defesa, haja vista que sequer há uma acusação. Isso é o de menos. O que importa é dizer que se está observando a Constituição e, como num passe de mágicas, o quadrado vira redondo. Para os garantistas extremados, não importa que o Ministério Público, além de outros órgãos como o Banco Central, COAF, Receita Federal, CPIs deixem de investigar, afinal a Constituição, por ela mesma, não quer isso, dizem eles de forma categórica.

    Ai está um exemplo claro do prejuízo à sociedade que o garantismo penal máximo pode causar. Em detrimento de toda uma sociedade que clama por maior apuração dos crimes e punição dos culpados, força-se uma interpretação constitucional que vai contra isso e somente encontra apoiono espírito garantista extremado e em outros três países do mundo (Uganda, Quênia e Indonésia). E faz-se isso desavergonhadamente, afinal, tem-se o respaldo de todo um acervo doutrinário já construído nesse país tropical,para a máxima proteção ao violador da lei penal. Cabe à sociedade reagir e exigir que tal atentado à democracia não ocorra, pois o povo, o destinatário da norma, que irá sofrer as consequências e não os garantistas extremados, que parecem viver no Brasil só em corpo, pois sua mente e espírito estão domiciliados em um país de primeiro mundo.

    Por fim, e voltando a questão da ausência de políticas públicas, não se ignora que estas, desde que adequadas, a médio e longo prazo, podem atenuar esse aumento vertiginoso da criminalidade. Não se ignoram as falhas do sistema de justiça, com a necessidade de maior investimento em estrutura que permita aos presos também um tratamento mais digno; que as investigações sejam mais eficientes; que haja mais estrutura de trabalho para as polícias, para o Ministério Público e para o Poder Judiciário. Mas, concomitantemente, há que se ter um direito penal que desestimule a prática de crimes por parte daqueles que não mudarão seu comportamento independentemente da existência ou inexistência de outras opções de vida e não é com a diminuição dos atores responsáveis pela investigação de tais condutas que se obterá isso. O estado deve cumprir o seu papel, se estruturar de forma adequada, sem que se busque no afrouxamento do Direito Penal e no enfraquecimento das autoridades um caminho alternativo para isso. Nenhum país, por mais desenvolvido que seja, em nenhum momento de sua história, abriu mão do Direito Penal ou visou retirar ou diminuir a sua função principal que é a de servir de prevenção, de desestímulo à prática de crimes. E não é o Brasil hodierno, que vive sim um grave momento de insegurança pública, que deverá dar esse passo perigoso de afrouxamento de um dos sustentáculos do direito e da justiça que é o Direito Penal, que visa principalmente à proteção de uma sociedade de vítimas, atuais e em potencial, e não somente a proteção de uma sociedade de delinquentes, sob pena de, ao final de tudo, só restarem às ideias por sobre os cadáveres, embebecidas em mares de sangue.

    *Promotor de Justiça no Estado do Paraná; Especialista em Direito Público e em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito.

    1 http://www.conjur.com.br/2013-fev-11/tourinho-neto-sou-garantista-porque-cumpro-constituição

    2 http://antiblogdecriminologia.blogspot.com.br/2013/03/joaquim-barbosaeimpunidade.html

    3 http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2579:catid=28&Itemid=23

    4 http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2013/03/07/mais-de-22-milhoes-de-brasileiros-saem-da-extrema-pobreza

    5 http://www.dgabc.com.br/News/6016549/cresce-latrocinio-no-grande-abc.aspx

    6 http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,numero-de-homicidios-sobe-14-em-são-paulo-casos-de-latrocinio-dobram,1013028,0.htm

    7 http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/12/30/interna_gerais,340224/bandidos-explodiram-274-caixas-eletronicos-em-minas-gerais-neste-ano.shtml

    8 http://www.gazetadopovo.com.br/pazsemvozemedo/conteudo.phtml?id=1203294&tit=Em-11-anos-taxa-de-homicidios-no-Parana-aumenta-86

    9 http://oglobo.globo.com/pais/policia-da-bahia-recomenda-treinamento-para-sair-de-porta-mala-7879841

    10 http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/02/02/nova-onda-de-ataques-em-sc-atinge-sete-locais-ja-são-30-em-nove-cidades.htm

    11 http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/sc-delegaciaealvejada-por-mais-de-20-tiros-em-itajai,d23c4fc7b94fa310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html

    12 http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1354809&tit=Agente-penitenciarioeassassinado-no-Boa-Vista

    13 http://www.paraiba.com.br/2013/03/22/05507-mesmo-comalei-maria-da-penha-aumenta-numero-de-casos-de-violencia-contraamulher

    14http://noticias.r7.com/cidade-alerta/noticias/bandido-preso-pelo-assassinato-de-adolescente-em-sp-debocha-do-crime/

    15 http://www.câmara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=927709&filename=Parecer-CCJC-05-10-2011

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